Mudando penteados, mentes e cidades

Desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o planeta vivia uma pandemia causada pelo novo corona vírus, a Terra passou a se mover de maneira diferente. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia, do British Geological Survey e do Observatório Real da Bélgica em Bruxelas, relataram queda de um terço no ruído sísmico, o barulho das vibrações na crosta do planeta. Associada a redução das atividades humanas e só experimentada em alguns instantes no Natal, essa queda permite a detecção de terremotos menores e melhora as condições de monitoramento da atividade vulcânica e de outros eventos sísmicos. Embora os efeitos de veículos em movimento e máquinas industriais em funcionamento possam ser pequenos individualmente, somados eles produzem ruído que reduz a capacidade dos sismólogos, que operam na mesma frequência.

andre

Passada a fase aguda de isolamento e fechamento de comercio, os países tem se deparado com um desafio: como retomar as atividades nas grandes cidades, caracterizadas por grandes densidades populacionais, sistemas de transporte público geralmente operando no limite e uma dependência ao veículo individual ainda muito presente. (?) Urbanistas, arquitetos e lideranças políticas têm dito que será quase que uma reinvenção da vida nas cidades. Algumas cidades já estão se reinventando.

Em Londres, ruas que apenas carros trafegavam, já viraram calçadas ou ciclovias, outras perderam espaço para pedestres e bicicletas, além de terem reduzidas suas velocidades máximas e 1000 novas vagas de estacionamento e 30km de novas rotas para bicicletas devem sair do papel nas próximas semanas. A prefeitura londrina quer 10 vezes mais bikes e 5 vezes mais caminhadas no curto prazo, que devem estimular o comercio de rua, muito afetado pela pandemia. Lojas que vendem e promovem a manutenção de bikes viram o movimento explodir em até 192% nas vendas, ajudadas por um milhão de vouchers de 50 Libras Esterlinas doados pelo governo, aproximadamente 340 reais, para pessoas recuperarem suas bicicletas. Há ainda uma discussão sobre o aumento do valor no pedágio para carros circularem nas ruas do centro.

A França segue o mesmo caminho ao lançar um pacote de incentivo ao ciclismo com o objetivo de esvaziar trens, ônibus e metros. Lá, um fundo de 20 milhões de euros, aproximadamente 116 milhões reais, foi criado para fazer com que as bicicletas sejam a primeira opção modal dos franceses. Cada pessoa terá direito a um auxílio de 50 euros, aproximadamente 290 reais, para consertar freios, pneus e sistemas de iluminação das magrelas. O plano, que é liderado pelo Ministério da Transição Ecológica e Solidária da França (gostei desse nome!), também instalará ciclofaixas temporárias nas grandes cidades, ampliará vagas de estacionamento seguro de bicicletas, além de oferecer um treinamento gratuito, de até 2 horas, para que os franceses aprendam a pedalar com segurança individualmente ou em um pequenos grupos. Só na metropolitana de Paris a meta é construir mais 750 km de ciclovias.

Alemanha, Itália, Bélgica e Espanha pedalam pelo mesmo caminho. Em Nova York, um plano do final de 2019 já previa que 1,7 bilhão de dólares seriam investidos nos próximos dez anos para construção de 250 novas ciclovias e 92 mil m2 de calçadas e espaços para pedestres.

bike

A história das cidades se conecta com a história das epidemias em diversos momentos. Grandes reformas urbanas empreendidas nos séculos XIX e XX trouxeram o traçado amplo de avenidas em Paris, que inspiraram outras cidades em todo o mundo a fazerem o mesmo em busca de espaços limpos que freassem a sequência de epidemias e surtos mortais. No Brasil, o prefeito carioca Pereira Passos e o sanitarista Oswaldo Cruz replicaram o modelo no Rio de Janeiro que também inspirou o traçado da Avenida Sete de Setembro em Salvador. Foi o urbanismo higienista, que acabava tratando populações vulneráveis como doenças a serem também erradicadas.

Na cidade do século XXI, com o avanço do trabalho remoto, que virou realidade da noite pro dia em muitas empresas, e que já se consolidou em diversas outras, as cidades poderão enfrentar uma mudança sem precedentes. Google, Facebook e Twitter, por exemplo, já liberaram seus funcionários que preferirem trabalhar de casa. E essa é uma tendência: menos espaço para escritórios físicos e mais cafés que oferecem internet, locais de trabalho compartilhado, restaurantes e parques.

Dessa vez o Brasil tem a chance de replicar um bom exemplo para a vida urbana antes da próxima pandemia. Não podemos deixar escapar a oportunidade colocada a nossa frente, de forma dolorosa, para fazer as cidades brasileiras mais “andáveis” e cicláveis.

A tarefa não é fácil. Nossas cidades que cresceram de forma desordenada e marcadas pela desigualdade, acumulam 20 mil ciclistas mortos entre 2004 e 2017 de acordo com dados do Ministério da Saúde. Em 2004 o Ministério das Cidades lançou o Programa Bicicleta Brasil, que virou a Lei n.º 13.724 em 2018, com a tentativa de fazer da bicicleta uma opção real para a mobilidade nas cidades brasileiras, entupidas de veículos motorizados, travando o fluxo e envenenando pulmões. Enquanto a Política Nacional de Mobilidade Urbana tem entre suas diretrizes priorizar os modais de transporte ativo sobre os motorizados e o transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado, o Programa Bicicleta Brasil, cheio de boas intenções, não saiu do papel. Fontes de financiamento genéricas somadas a ausência de um programa de governo que distribua recursos do orçamento da União fizeram o PBB mais uma daquelas leis no Brasil que não pegou. Mas não falta só dinheiro para fazermos da bicicleta um modal utilizado por grande volume de cidadãos aqui, falta, também, visão sistêmica dos benefícios que a bicicleta proporciona e o que ela rende em benefícios sociais, econômicos e ambientais.

quadrinho

Pedalar faz bem à saúde, pro meio ambiente e pra economia. Um exercício aeróbico e, ao mesmo tempo, um transporte ativo com zero emissão de gases poluentes. O Sistema Único de Saúde (SUS), economizaria R$ 34 milhões por ano só na cidade de São Paulo com a queda do número de internações por diabetes ou doenças circulatórias, se a população paulistana aderisse ao uso da bike em escala, de acordo com estudo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). No Brasil, as mortes causadas pela poluição do ar aumentaram 14% em 10 anos, segundo o Ministério da Saúde que verificou mais óbitos por câncer de pulmão, traqueia e brônquios e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Em 2006, 38.782 morreram, número que pulou para 44.228 em 2016, de acordo com o estudo Saúde Brasil 2018. Internações por problemas respiratórios custaram R$ 1,3 bilhão ao SUS em 2018. Evidências cientificas sugerem que a poluição do ar, incluindo a fumaça dos gases de escape, reduz chances de sobrevivência a Covid-19. Recentemente, um estudo desenvolvido pela Imperial College e pela Universidade de Cambridge e publicado na Lancet Planetary Health (https://www.thelancet.com/journals/lanplh/article/PIIS2542-5196(20)30079-6/fulltext), que pesquisou as associações entre modo de viagem e doenças cardiovasculares, câncer e mortalidade por todas as causas e incidência de câncer, usando dados do Censo vinculados há 25 anos na Inglaterra e no País de Gales, revelou reduções de 20% nas taxas de morte prematura, de 24% no risco de doenças do cardiovasculares, de 16% nas mortes causadas por câncer e de 11% em diagnósticos de câncer.

Mas nossas cidades estão amontoadas de carro. Entra governo e sai governo, somas vultosas de isenção tributária seguem fazendo com que montadoras de veículos motorizadas travem os centros urbanos. De acordo com dados do SIMOB – um levantamento anual realizado pela Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), a bicicleta é responsável, em média, por 3% de todas as viagens realizadas diariamente no Brasil, apesar de sermos o quarto maior produtor de bicicletas do mundo, mesmo sem incentivos governamentais. Enquanto a isenção de IPI dado as montadoras de automóveis custa R$1,22 bilhões ao ano de forma direta, a renúncia fiscal para o setor de bicicletas representaria nove vezes menos, 131,6 milhões (dados de 2014), de acordo com o estudo “Análise Econômica do Setor de Bicicletas e suas Regras Tributárias” lançado pela Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike). Além do custo da renúncia fiscal advinda das isenções, o setor automobilístico gera externalidades negativas como o permanente estado de travamento do trânsito nas cidades, a poluição do ar e seus custos associados a saúde pública. Por outro lado, politicas similares para o setor de bicicletas gerariam benefícios como a melhoria na saúde das pessoas, melhoria na qualidade do ar nas cidades e menos trânsito nas ruas.

bik

Pagamos mais caro por uma bicicleta que norte americanos, europeus, chilenos e argentinos por conta da alta carga tributária, que eleva o valor médio em 72, contrastando com 37,17% sobre um carro popular, de acordo com a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores). Estados e Governo Federal ignoram o potencial da bicicleta e seguem impondo pesadas taxas de ICMS, IPI e o Imposto de Importação. A alíquota de ICMS nos estados, além de encarecer a produção local, afeta toda a cadeia de distribuição, revenda e manutenção e piora quando o estado adota o modelo de Substituição Tributária elevando ainda mais o imposto. O IPI repercute em cascata sobre o ICMS e outros impostos (os pneus de borracha utilizados em bicicletas, por exemplo, tiveram sua tarifa de importação alterada de 16% para 35%), aumentando o preço final e até inviabilizando a produção formal de bicicletas fora do Polo de Manaus, local de maior produção do país. Estão colocados os elementos que inibem o aumento no volume de vendas e incentiva o mercado informal, formado por pequenas oficinas, e que, se estima, representa 50% da produção nacional. Ainda incidem sobre as bicicletas as contribuições do PIS/PASEP-Importação e a COFINS. O aumento do Imposto de Importação em 2011, de 20% para 35%, complementa o cenário, restringindo ainda mais o acesso do consumidor à bicicleta.

Uma campanha publicitária inusitada transformou uma bicicleta em uma poltrona (os móveis pagam 12% de impostos), para chamar a atenção da alta carga tributária que incide em uma bike. O resultado dessa alta taxa de tributos é o aumento do valor final da bicicleta que, consequentemente, reduz a demanda do consumidor pelo produto afetando a comercialização. Uma importante característica da cadeia produtiva de bicicletas é a sua pulverização. Produção, comércio e manutenção de bicicletas geram empregos de forma distribuída por todas as regiões brasileiras. A necessidade de muitas peças para a produção de uma bicicleta é uma enorme oportunidade de ampliar ainda mais o impacto socioeconômico dessa cadeia, já que atualmente uma boa parte é importada, devido a baixa competitividade e elevada carga tributária que prejudicam a produção local.

A bicicleta é tão rápida quanto o carro em percursos urbanos médios, de até cinco quilômetros e, em cidades desiguais como as brasileiras, é um fato de inclusão social, ajudando famílias a chegarem a seus destinos, em meio a dificuldades econômicas usando-a como meio prioritário de transporte. Em cidades com níveis elevados de tráfego, ela se coloca como uma alternativa real: na Cidade do México por exemplo, a bicicleta atinge a velocidade de 16 km/h enquanto um carro trafega a 12 km/h em média nos horários de pico de trânsito. Em São Paulo, a Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos estima que R$ 4,1 bilhões por ano é o volume das perdas com acidentes de trânsito, poluição e engarrafamentos.

Um aspecto que reduz o potencial de escala para o uso da bicicleta é a ausência de infraestrutura nas cidades brasileiras. É nítido que muitas vêm investindo na construção de ciclovias e ciclofaixas, mas há ainda baixa conectividade entre corredores cicloviários, bem como integração com outros modais, o que deixa o ciclista desamparado e disputando espaço com outros veículos em vias com alta velocidade, o que aumenta a letalidade em possíveis acidentes. A arborização das ciclovias é uma importante aliada em um país tropical como o Brasil e a iluminação é fundamental, dado os altos índices de criminalidade e também ajudam a reduzir acidentes. É preciso ainda distribuir paraciclos e bicicletários pelas cidades, educar motoristas e construir infraestrutura de apoio nas empresas para banho e guarda de equipamentos.

Salvador avançou muito nos últimos anos. Construiu uma boa rede de estrutura cicloviaria, distribuiu estações de aluguel de bike pela cidade, desenvolveu treinamento com motoristas de ônibus para respeito ao ciclista, promoveu campanhas de mobilização e cidadania no trânsito, reduziu velocidades máximas em uma grande quantidade de vias e virou caso de sucesso mundial, reconhecido pela ONU, com a redução no número de mortes no trânsito. Mas ainda possuímos o desafio de conectar ciclovias e ciclofaixas, permitindo que viagens mais longas possam ser feitas com segurança, e ainda mais campanhas de respeito mútuo no trânsito. A Política e o Plano Municipal de Mobilidade Sustentável(http://www.planmob.salvador.ba.gov.br/images/consulte/planmob/Booklet-Planmob-SE-v9-A4.pdf), sancionada e decretado em 2018, trazem como prioridade no horizonte dos próximos 30 anos a mobilidade ativa, especialmente as caminhadas e a bicicleta, além do transporte público de massa já com programas desenhados e estimativas orçamentárias levantadas. Temos uma grande oportunidade pela frente e condições de fazer acontecer.

Enquanto nos países que incentivam a mobilidade por bicicleta, lojas e indústrias seguem crescendo em tempos de pandemia, aqui no Brasil metade das lojas de bicicletas tiveram queda no faturamento igual ou superior a 50% e um terço amargaram uma queda superior a 70% no faturamento. É fundamental repensar toda a cadeia da bicicleta. A ALIANÇA BIKE estima que a desoneração tributária para o setor representaria um incremento de 14% apenas no consumo de bicicletas, sem contar os benefícios em cascata da economia de rede.

Um transporte limpo, barato, saudável e que ajuda a desobstruir artérias urbana, a ciclomobilidade precisa de apoio de todas as esferas governamentais para estimular a produção, comércio e uso de bicicletas.

Não há contraindicações urbanas para o uso de bicicletas. O que pode acontecer é que, talvez, ela mude seu penteado. Mas com certeza, a bicicleta mudará sua mente e sua cidade.

Escrito por: André Fraga, Engenheiro Ambiental e Ciclista www.andrefraga.com@euandrefraga